NO CORAÇÃO DO HOMEM, A INSCRIÇÃO DE DEUS
Imaginemos a cozinha de um lar onde a mãe termina de enfeitar um bolo. Enquanto isso, o filhinho acompanha, fascinado pelas cores e pelo delicioso aroma. Concluído o serviço, ela guarda na geladeira e avisa:
— Agora vou sair, e você não toque neste bolo, pois é para o aniversário de seu irmão!
Dali a pouco o pequeno encontra-se sozinho na casa. Brinca um pouco no jardim, mas seu pensamento permanece em outro lugar. Não resiste e vai até a geladeira, “apenas para olhar”… Afinal, passa o dedinho pela saborosa cobertura… e acaba se servindo fartamente. Depois volta para o jardim, deixando por todos os cantos adocicadas e ingênuas impressões digitais.
Quando a mãe retorna, logo percebe as “marcas do crime”.
— Foi você?! — pergunta.
— Não, não fui eu! — responde o filho.
—Não está mentindo? —indaga a mãe, e o pequeno logo enrubesce.
Quem o ensinou que não se pode mentir? Ninguém… Em sua tenra idade, nem frequentou as aulas de Catecismo ainda. E nem sequer conhecia o sentido da palavra “mentir”. No entanto, seu rubor constituía a melhor prova de ter ele compreendido a maldade de uma mentira, simplesmente ao tomar contato com ela.
Com efeito, as Sagradas Escrituras, a Tradição e a filosofia apontam para a existência de uma qualidade da alma humana: desde os primórdios do uso da razão, intuir os primeiros princípios morais, distinguindo o bem do mal, capacitando-a a orientar-se para a reta conduta.
“Imprimirei minha lei em suas entranhas e hei de inscrevê-la em seu coração” — afirma o próprio Deus (Jr 31, 33b)
A Escritura mostra que, já nos primórdios da sociedade, ainda sem possuir letras, os profetas ou juízes, bem como comum dos homens conheciam seus deveres morais.
Mas, para que nossa reflexão não permaneça circunscrita aos tempos imemoriais, será de interesse analisar as contribuições oferecidas por modernos estudos.
Uma equipe de cientistas do Departamento de Psicologia da Universidade de Yale (Connecticut, EUA), liderada pelo Prof. Paul Bloom, vem realizando pesquisas cujos resultados, vistos por muitos como uma descoberta inédita — em certo sentido, de fato o é —, confirmam o ensinamento multissecular da Igreja, e “contrariam aquilo que foi ensinado durante décadas a legiões de graduandos em psicologia”. (1)
Reunindo grupos de bebês de 4 a10 meses — muito antes, portanto, do uso da razão —, os peritos apresentaram-lhes a seguinte situação: uma bola tenta escalar uma íngreme colina. Por duas vezes ela cai sem conseguir alcançar o objetivo, mas na terceira é ajudada por um triângulo e chega por fim ao topo. Logo a cena se repete com uma variante: por mais duas vezes tenta a bola subir a ladeira sem consegui-lo e, na terceira, em lugar de receber ajuda, um quadrado a empurra para baixo. Interessadas, as crianças acompanham o desenrolar da trama e reagem de forma surpreendente: 80% se manifestam a favor do triângulo amigo e rejeitam o quadrado malévolo.
Prosseguindo nas experiências, os psicólogos apresentaram um cachorro de brinquedo tentando abrir uma caixa. Aproxima-se dele um urso de pelúcia e oferece-lhe uma ajuda, mas chega outro urso, senta-se sobre a caixa e impede a operação. A grande maioria dos bebês, quando estimulada a eleger um dos dois, escolhe o urso prestativo.
Num terceiro enredo, surge em cena um coelho ladrão que rouba a bola de um gato, enquanto outro a devolve. Neste caso, crianças de cinco meses escolhem o coelho benfazejo, e algumas um pouco maiores tomam a iniciativa de bater no malvado. Poder-se-ia afirmar que eram bebês justiceiros! (2)
Aprofundamentos rigorosos feitos a partir dessas constatações comprovam que os bebês diferenciam ações sociais como boas ou más, e atribuem boas e más qualidades a quem as pratica.
“Evidentemente, muitos aspectos de um sistema moral plenamente desenvolvido estão fora do alcance de crianças que ainda não falam. […] Nossas descobertas indicam que seres humanos se envolvem na avaliação social numa fase de desenvolvimento muito anterior ao que se pensava previamente, e sustentam a opinião de que a capacidade de avaliar os indivíduos a partir de suas interações sociais é universal e não aprendida”, (3) concluem Bloom e seu grupo.
Estamos, portanto, diante de um hábito inato da alma humana que antecede e prepara de forma espontânea o juízo da consciência, constituindo o ponto de partida sobre o qual se construirá o edifício da moralidade (4) ou “uma íntima repugnância pelo mal e uma íntima atração pelo bem”. A este hábito, São Tomás de Aquino chama de sindérese. (5)
Esse hábito da sindérese nos possibilita uma intuição rápida e certeira dos primeiros princípios que regem os atos morais, como o exemplo do bolo e as experiências com bebês denotam.
Toda pessoa o possui pelo simples fato de ser racional; no período anterior ao do uso pleno da razão, ele atua no mesmo lusco-fusco em que age a própria razão; e no posterior, conduz ao cerne da verdade moral, propiciando à consciência emitir um parecer verdadeiro.
Desse modo vemos existir no homem uma propensão natural para a retidão e para a justiça, o qual lhe é tão natural quanto o ar que respira ou as cores que enxerga. Ou, exprimindo de outro modo, é um senso que não depende de raciocínio, de modo semelhante ao que se passa com um pessoa caso se lhe encoste na pele um objeto gelado (ou quente): ele reagirá independente de fazer qualquer raciocínio.
A sindérese não é pois, a uma aptidão adquirida. Embora não nasçamos com ideias latentes, trazemos desde o berço este selo indelével que nos conduz à intuição dos primeiros princípios.
Mesmo assim, é sabido que a sindérese não nos oferece princípios explícitos e formulados, tornando-se indispensável, por tal motivo, explicitar os termos que compõem os princípios, mediante o contato experimental com a realidade concreta: os bebês acima mencionados, por exemplo, não reagiriam como foi visto, sem o confronto com o comportamento dos bonecos. Mas, será a partir de constatações como estas que, na idade da razão, serão formados todos os critérios morais que nortearão o curso de nossas existências.
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(1) BLOOM, Paul. The Moral Life of Babies. In: The New York Times Magazine, 9/5/2010, p. MM44: www.nytimes.com.
(2) Idem. Os vídeos de alguns testes estão acessíveis no mesmo site citado acima.
(3) Hamlin, J. Kiley; WYNN Karen; BLOOM Paul. Social evaluation by preverbal infants. In: Nature. London, 2007, v.450, p.558-559.
(4) São Tomás qualifica de: “um hábito natural especial” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q.79, a.12, resp.); uma disposição interior inata, que atua como um habitus: “O habitus dos primeiros princípios, que se chama sindérese” (Idem, I, q.79, a.13, ad 3.). Sobre os hábitos, sua natureza, distinção, possibilidade de perda e diminuição, São Tomás trata com profundidade na Suma Teológica, I-II, q.49-54.
(5) RATZINGER, Joseph. “Elogio della coscienza: il brindisi del Cardinale” In: Il Sabato, 16/3/1991, p. 83-91.
(Condensado do artigo com o mesmo título, de autoria do Pe. Joshua Alexander Sequeira, EP, na revista “Arautos do Evangelho”, nº 109, de janeiro de 2011, p. 18 a 23. Para acessar a edição atual da revista clique aqui)
(Ilustrações: Fotogramas do vídeo difundido pelo New York Times em sua página web; WordPress)